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Emília Goulart - AAL - Meu amigo bem-te-vi


Meu Amigo Bem-te-vi

Meu bem-te-vi! Cá estou eu novamente com minhas migalhas de pães e minhas palavras ao vento. Eu sei que nem só de pão vive o homem, mas pensei que, por ser um bem-te-vi, o pão te bastaria. 

Percebo que me enganei. Gostaria de ter acordado com teu piar, mas não, hoje amanheceste calado. Atrasaste um pouco. Não tanto quanto nossas morosas leis. Também, não és cego como a justiça. Há tempos te ouço repetir: “bem te vi... bem te vi...” São surdos os legisladores?

Hoje você se alimentou pouco, também fez pouco das minhas migalhas, sequer recolheu alimentos para levar ao ninho. O quê aconteceu? Seu ninho deslizou cajueiro abaixo com os rejeitos de minérios?

Há dias em que também fico assim melancólica e posso parecer: pessimista ou saudosista. Já me denominaram com estes qualificativos e outros mais. Hoje mesmo pensei o que faz o homem manter barragens abertas quando não tem mais utilidade? Por outro lado levar para onde esses resíduos?

Sabe de uma coisa, bem-te-vi? Estou temendo pela Lua.

Será errôneo pensar que caminham para o futuro carregados deste triste legado de ambições? As leviandades e barbáries do passado nada nos ensinaram? Ah! Quantas perguntas se agitam na minha mente!
Será crueldade desejar o corte para  as saídas temporárias?

É sinal de mau gosto não encontrar entretenimento nos meios de comunicações? Estou ultrapassada por pensar que a família deve estar em primeiro lugar e que Deus não pode ser vendido nas bancas de feiras livres, denominadas TVs? Que frutas saudáveis não são recheadas com silicone?

Será mesmo um retrocesso crianças trabalharem em vez de se drogarem ou perambularem a esmo sem encontrarem um sentido para suas vidas? Triste dia para eu falar dessas coisas, eu sei que deve estar muito triste por ter perdido seu ninho bem-te-vi. Mas sabe como é, uma coisa ruim leva a outra.

Sou saudosista ao lembrar as palavras do meu avô: “Um pai que não educa seus filhos permite que a vida os puna”. Este educar, do meu avô, algumas vezes esteve carregado de exageros, mas se estava tão errado, como explicar o fato dele ter criado doze filhos educados, honrados e saudáveis?

Hoje, bem-te-vi, vejo lotada as prisões, muitos jovens, com futuros promissores, nas mãos de traficantes.

Sabe... Bem-te-vi, eu gosto de ficar tomando o sol da manhã, fazendo perguntas sem obter respostas, comendo a poeira do gado que só passa nas minhas lembranças e ouvindo o teu piar. Você não me julga, nem me reprime. Eu sei que entre suas tristes penas carrega a saudade da mata que abrigava teus ninhos e te protegia da crueldade dos homens.

Vá! Come estas migalhas e voe para o cajueiro, se é que te resta um lugar para construir novo ninho longe dos perigos de deslizamentos. Outras barragens irão romper, outros temporais virão e logo ninguém ouvirá mais um piar de bem-te-vi.

O tempo ainda não mudou. Tuas penas continuam as mesmas. Canta o repertório de sempre e ninguém diz que este verso que te vem das raízes está fora de moda.

Bem-te-vi ficaria aqui por horas te falando sobre tantas coisas; que uma humanidade sadia pode construir uma sociedade melhor, que uma justiça menos cega pode tornar o mundo mais justo, que menos dinheiro desviado proporcionaria mais saúde e educação, que com menos ganância sua mata estaria preservado. Com mais criatividade se produziriam melhores programas para as emissoras de televisão, mais educativos e menos vulgares. Tantos quês me vêm à mente que não caberiam aqui neste espaço.
Nossa... Bem-te-vi! Você já vai? Cansou-se de me ouvir?

Ah... Tudo bem! Entendi! Você tem um lar para reconstruir. Então boa sorte. Não se esqueça de providenciar todos os meios de segurança. Fique ligado bem-te-vi, qualquer descuido pode ser fatal. A Páscoa se aproxima e com ela nova temporada de caça será decretada. No carnaval tome cuidado nas estradas, a lei seca vai estar molhada e escorregadia.

Quem sabe um dia eu comece a piar; você a falar, os legisladores a ouvir, a justiça a enxergar, os trabalhadores a comemorarem as datas festivas em liberdade sem medo das saidinhas. Sem notícias ruins, pode ser que os jornais liberem mais espaço para a poesia. 

Emília Goulart dos Santos, bisavó, dona de casa. Pertence ao Grupo Experimental desde a sua fundação. Ganhou vários concursos de contos. Escreveu vários livros e publicou outros, inclusive romances. Atualmente é também acadêmica da Academia Araçatubense de Letras. E-mail: emiliagoulartsantos@ig.com.br




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