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Alice Silva - GE - Gavetas


Gavetas

Anita acordou bem cedo. Emprego novo, primeiro dia, depois de muito buscar. Queria caprichar na aparência, impressionar. A tal vaga lhe custara muito esforço. Exigências muitas, salário compensador. Gostava de ser secretária, e se especializou com muito empenho. 

Assustava um pouco ter três diretores para atender, mas quem deixava o cargo a incentivou bastante, além do que trabalhariam juntas por duas semanas, até que ela se familiarizasse um pouco com o trabalho, conhecendo um pouco da personalidade daqueles três diretores. 

Era bem tímida a moça; buscou no seu armário uma roupa discreta e de bom caimento. Pouca maquiagem, e um suave perfume de rosas... Não precisava de muita coisa, já era bela por natureza.

Antes de sair de casa, buscou um tempo em meditação. Tudo novo para ela naquela manhã: as mãos frias, trêmulas, umedeciam o volante de seu velho carro. Velho, porém bem conservado, adquirido com muita economia e disciplina. 

O vento matinal acariciava seu rosto com a mensagem: tudo vai dar certo, minha rosa do jardim. E por falar em rosas, amava flores: passou pela avenida principal cheia de acácias em flor, sentindo a energia do amarelo forte; o flamboyant com seu vermelho descarado a saudou também. Ao chegar, lhe indicaram a sala, a escrivaninha que iria ocupar junto à secretária que lhe ensinaria o serviço, a princípio. Fotografou tudo da sala na memória, e em pouquíssimo tempo, detectou mudanças necessárias ali, que assim que a colega virasse as costas, ela faria, com certeza. 

Não foi uma semana fácil para ela, com informações novas a cada momento. Das três gavetas da escrivaninha , uma tinha chave: ali estavam artigos pessoais da atual secretária. Olhava para aquela chave balançando, e sua curiosidade só aumentava. Haveria de vasculhar essa gaveta, antes que fosse esvaziada: sua intuição lhe dizia que  informações importantes sobre o que iria enfrentar naquela empresa, estavam ali, e não lhe seriam reveladas pela colega. 

Anita conhecia muito bem as mulheres. Já sabia o que era amar, o que era sofrer por amor. Jamais sentiu a menor atração pelo sexo oposto. Nesse momento, depois de muitas decepções, não pretendia ter alguém: estava focada na carreira. 

Com pouco tempo de convivência, já notara que a moça que lhe passava o serviço tinha alguém que lhe permitia um padrão de vida muito além do salário. Esse indivíduo estava ali, na sala ao lado. 

Trocas de olhares, brincadeiras picantes, insinuações. Os dois não se preocupavam muito com Anita, atenta a tudo que se passava ali. Na mesa dele, uma bela foto da esposa, que Anita tinha vontade de esconder numa gaveta. Como se os olhos lindos daquela foto pudessem presenciar o que acontecia naquela sala, e se ferir. 

Um olho no peixe, outro no gato, Anita não tirava os olhos da chave da escrivaninha e seu chaveiro brega, de pedras vermelhas. Naquela  noite, em casa, continuava pensando naquela gaveta. Adormeceu, e sonhou com uma  senhora. A mulher se chamava Ética, e chamou Anita como se chama uma velha conhecida. Conversaram por um tempo, ali no sonho. Acordou, se preparou e foi para o trabalho. Lá chegando, olhou para a gaveta que lhe era proibido abrir. Se sentiu aliviada por não depender de nenhum segredo que pudesse comprometer sua vida profissional. 

Abriu por algum tempo a gaveta da memória, e lá encontrou muita coisa inútil: velhas opiniões,  precipitados julgamentos, antigos preconceitos. Era preciso uma limpeza, e começaria naquele dia mesmo. Gaveta arrumada, e somente com o necessário. E assim, focada em si mesmo, perdeu o interesse pela gaveta proibida. Não lhe dizia respeito a vida daquela moça: se agia errado, a vida se encarregaria de lhe cobrar o preço.

Alice Mara Barbosa da Silva, 61 anos, araçatubense, formada em Administração de Empresas;  Integra a coordenação do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras e participa pela primeira vez de coletânea. E-mail alicemara356@gmail.com

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