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Alice Silva - GE - Ulisses



Pescadores - Di Cavalcanti
Texto: Ulisses

Ulisses retornou aquela tarde. Quando não havia mais esperanças, ei-lo chegando. Não recebera de sua mãe por acaso o nome de um guerreiro da mitologia grega. Roupas surradas, barba enorme, cabelos ressecados de sal, estava quase que irreconhecível. Os olhos opacos, a

pele ressecada, desidratada, mãos feridas, havia perdido muito peso. Parecia um sobrevivente de guerra. E de certa forma, sim, os últimos dias tinham sido de muita luta para sobreviver.

Veridiana, sua esposa, se recusava a crer que ele tivesse morrido no mar. Mulher enigmática, de muitas premonições e clarividências, tinha certeza que não era a hora dele. Esperaria por ele ali na praia até cair morta, junto a Valente, seu cão inseparável. Envolveu Ulisses num
forte abraço, cheia de gratidão por ele estar vivo. Não teve coragem de perguntar pelos amigos que partiram com ele. Pelo estado da embarcação, era um milagre alguém ter se salvado. Levou-o para o barraco sem pressa ou palavras, serviu-lhe uma bebida forte, que ele num só gole sorveu. Ulisses correu os olhos pelo barraco, e com dificuldade segurou o choro.

Respirou fundo, e o cheiro daquele lugar lhe trouxe conforto. Seus pés descalços, feridos, acariciaram o chão rústico . N o pescoço, o cordão inseparável com a imagem de Yemanjá, que agarrara com força na última noite de tormenta e agonia – Odoiá, minha mãe! – foi sua primeira saudação ao sair do mar naquela manhã. 
Nos últimos dias, perdendo os amigos, um a um, imaginou que a Rainha do Mar o requisitava de uma vez por todas para morar com ela.

Homem de poucas palavras, ele saiu daquela expedição convicto de que seria a última. Já tinha dito a Tales, seu melhor amigo, companheiro naquela jornada, que estava pensando em filhos, consolidar a família e não queria para seu filho a profissão de pescador. Estava cansado da
pesca, queria dar a Veridiana uma vida nova, mais conforto; ela bem que merecia. 

A agonia que via no rosto dela quando ele não retornava do mar na data prometida... era sofrimento demais. Ela largou sua família, um lar confortável para viver com ele naquele barraco. E nunca se mostrara arrependida. Sua maior virtude era calar. Falava na hora certa, poucas palavras,
mas com muita sabedoria. Ulisses nunca tinha argumento para rebater a fala dela.

– Que mulher! Pensava ele. Tinha muito a aprender com ela. Ouvia dos amigos pescadores as queixas fúteis que eles tinham das companheiras e no íntimo agradecia a Deus a companheira
que tinha. Ela, assim como ele, amava o mar. Agora precisava dormir na paz daquele refúgio que era seu lar. Custou a dormir: o barulho das ondas que sempre embalou seu sono, agora lhe trazia inquietação. Mas dormiu, e sonhou. 

Sonhou com Tales, e suas últimas palavras, quase um delírio. Ele lhe dava instruções do que fazer com o tesouro que há algum tempo tinham retirado do mar, e guardavam segredo, conscientes da mudança de vida que estava
prestes a acontecer para os dois. Os outros pescadores não entenderam nada, debilitados pela fúria do mar, à beira da morte, julgaram mesmo que ele variava, de inanição, desidratado ao extremo. Ainda custava a acreditar que não mais veria o amigo, acordou e foi à praia. O mar sempre foi para ele um professor. Fechou os olhos, sentindo a temperatura agradável da água,
as lágrimas desceram salgadas, aliviando o peito doído. Teve a orientação de que um ciclo de sua vida se fechava ali, naquele momento. Um avaliador foi contratado, e só depois de ter
certeza do que tinha em mãos, daria a noticia a Veridiana. Tesouro desenterrado, avaliado, o arranque financeiro necessário para uma nova vida, muitas expectativas. 

Convicto de que a vida não é feita de certezas, se lançava agora em outras águas, totalmente desconhecidas. Sua
fiel companheira junto, pronta para o que viesse pela frente. O firmamento anunciando que tudo daria certo, e assim foi.


Alice Mara Barbosa da Silva, 61 anos, araçatubense, formada em Administração de Empresas;  Integra a coordenação do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras e participa pela primeira vez de coletânea. E-mail alicemara356@gmail.com

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