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Alice Silva - GE - Hoje


Hoje

Hoje eu quero sair só. Se alguém perguntar por mim, diga que não me viu. Hoje eu quero a roupa mais surrada e folgada. O tênis mais velho e desbotado, o cabelo despenteado, e a boca sem batom. Não quero bolsa, documentos, celular. Não quero presença que eu não requisite. Não quero hora para voltar: cancelei os compromissos todos. 
Quero sentir o vento de outono no rosto, pisar flores secas no chão, ouvir os pássaros cantar. Os poucos pássaros que ainda teimam a nos rodear.Quero mexer na terra, e nela me revigorar.  
Hoje quero esquecer tudo que me afastou do contato físico de tantos amigos queridos, que hoje quase não os reconheço mais. 
Hoje eu quero conversar com uma criança, assunto de criança. Hoje vou ao hospital. Quero visitar alguém que não será visitado. 
Hoje eu quero pintar com as cores de Frida Kalo. Quero ensinar algo, a alguém desejoso de aprender. 
Hoje quero ser feliz, mais do que ontem. Vou me esforçar para ver, sentir, amar, de uma forma que nunca fiz antes. 
Hoje quero perdoar quem me ofendeu, e nem sequer percebeu o estrago que fez. Quero um coração novo, cheio de esperança na humanidade. 
Hoje vou tomar um café sem pressa, sorvendo cada gole demoradamente.  
Mas agora me dei conta: acordei e não consigo me mexer! Será que estou sonhando?! A sensação é muito boa, então relaxo e espero. Abro os olhos, e não estou mais no meu quarto. Agora, justo agora, logo agora.... 
Minha viagem para Portugal, tão esperada, não acontecerá? Minha amiga de aventuras vai ficar muito brava comigo! Não há desespero: só aceitação.
Estou num outro plano, como me disseram que era, exatamente, é. Minha tia, uma querida,  se aproxima, e com ela minha mãe. Que saudades estava delas! As duas me olham com aquele olhar amoroso. 
Não precisam de falar: compreendo as duas pelo olhar. Não preciso perguntar nada: as respostas vêm naturalmente,  consistentes, esclarecedoras, de mente para mente. Estou leve como nunca estive. Se estou no mesmo lugar que elas, então estou num excelente lugar. 
Minha dor nas costas desapareceu; tenho a sensação de ter ganhado um corpo novo.  Minha cabeça está leve, e agora visualizo um poço. Um poço daqueles que via nos sítios, quando criança. Os tijolos da base do poço estão esverdeados de lodo. Nas laterais, pelos buracos entre os tijolos rudemente assentados, saem plantinhas de um verde viçoso invocando vida.
O poço está naquele lugar há muito tempo, penso eu. Muitos beberam daquela água, e quem o providenciou naquele lugar, sabia que muitos por ali passariam exaustos, sedentos.A corda que puxa a água é velha , ressecada, alguns fiapos se soltam dela, denotando que já foi muito usada.  
Passo a refletir na minha vida, no que exatamente eu possa ter feito ao longo dela que permanecerá após minha partida, feito aquela velha corda que movimentando o balde do poço, saciou a sede de muitas pessoas. Refletindo,  vejo que muito pouco que eu fiz foi importante para minha evolução . Se houvesse outra chance, teria me importado menos, ouvido mais, e falado pouco. 



Alice Mara Barbosa da Silva, 61 anos, araçatubense, formada em Administração de Empresas;  Integra a coordenação do Grupo Experimental da Academia Araçatubense de Letras e participa pela primeira vez de coletânea. E-mail alicemara356@gmail.com

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